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Luto materno: Política Nacional de Humanização esbarra em despreparo dos médicos e racismo estrutural

  • winnylimax9
  • há 6 dias
  • 7 min de leitura
Foto: Montagem com foto de Unsplash
Foto: Montagem com foto de Unsplash

Euclidia Maria tem 62 anos e recorda com dor os momentos que viveu na maternidade após perder o primeiro filho, há 36. Ela estava com nove meses quando deu entrada em um hospital no Rio de Janeiro e, tendo vivido uma gravidez saudável até ali, se assustou quando o médico perguntou se ela tinha caído ou sofrido algum tipo de estresse. O quadro não era bom e, depois de três dias exaustivos de trabalho de parto, seu filho nasceu morto. 


“Voltei para a enfermaria onde havia mulheres com seus filhos, mulheres saindo para o pré-parto. Eu não sabia o que fazer. Fiquei em choque. Guardei meu choro, porque dá uma sensação de vergonha, de impotência. Eu ficava olhando para a janela, sem conseguir conversar com ninguém. Eu ia falar o quê? Conversar sobre o quê? Só me restava olhar para o teto, cobrir a cabeça e chorar em silêncio. Guardei isso por muito tempo”, conta. 


Três anos depois, após perder uma segunda gestação por aborto espontâneo, Euclidia deu à luz um filho vivo. O bebê precisou ficar internado no CTI (Centro de Terapia Intensiva) e, enquanto isso, ela dividiu o quarto com outra gestante. Quase como uma reprise do seu pesadelo, ela assistiu à mulher sofrer um aborto espontâneo e expelir o feto ali mesmo. 


“Foi quando liberaram meu filho do CTI. Eu observei essa jovem e falei: olha, eu não quero que meu filho fique comigo no quarto, porque aquela menina não está bem. Eu tive uma preocupação com meu filho, mas, no fundo, também estava preocupada com ela. Uma criança chorando, uma mãe amamentando, e ela lá, sofrendo o luto. Então preferi que meu filho ficasse no CTI”, afirma. 


Apesar da história de Euclidia já ter ocorrido há mais de 30 anos, nada mudou na realidade das mães enlutadas. Este ano, Yohanna Nascimento, de 37, viveu o que ela descreve como os momentos “mais dolorosos e traumáticos” da sua vida. Ela estava com 12 semanas de gestação e foi a uma consulta de pré-natal na UBS de Taguatinga Norte, no Distrito Federal. Chegando lá, relatou à médica que estava com cólicas e dores de cabeça, recebeu a recomendação de tomar um analgésico e voltou para casa. Três dias depois, uma ultrassonografia revelou que ela havia sofrido um aborto retido, quando o feto ou embrião não é expelido pelo útero. 


Encaminhada para o hospital onde faria o procedimento de AMIU (Aspiração Manual Intrauterina), Yohanna foi colocada em uma sala com outras mulheres grávidas que esperavam para realizar o ecocardiograma fetal, exame que avalia o coração do bebê ainda no útero. “Foi uma tortura psicológica. Pedimos para a médica me trocar de lugar, e ela disse que não podia fazer nada”, conta. 


Após ser medicada, ela sentiu contrações por mais de três horas até sua bolsa estourar. Sem nenhum tipo de assistência, Yohanna ainda teve de caminhar sozinha enquanto sangrava até a sala onde terminaria o processo. 


“Depois disso, só lembro que acordei numa sala com outra mãe com o seu bebê recém-nascido. Uma enfermeira pediu para colocarem uma divisa para me preservar, mas uma outra falou que não poderia fazer nada e que eu ia ter que lidar com isso. Meu esposo chegou a pedir para enfermeira-chefe, e ela também disse que não poderia fazer nada”, lembra. 


Questão de saúde pública


Desde que há notícias sobre a humanidade, mulheres engravidam e, à revelia de seus desejos, perdem seus filhos durante a gravidez ou no momento do nascimento. Ainda assim, somente no dia 26 de maio deste ano foi sancionada a lei que cria a Política Nacional de Humanização do Luto Materno e Parental, que passará a tratar do acolhimento a famílias que enfrentam a perda de um filho durante ou até 27 dias depois da gestação – considerado o período neonatal.


A nova diretriz será incorporada ao SUS (Sistema Único de Saúde) e garante que as mães enlutadas sejam acomodadas em alas separadas na maternidade. Outro ponto tocado pela lei, e ao qual Euclidia Maria não teve acesso, é o direito sobre a escolha da realização ou não de rituais fúnebres e a oportunidade de a família participar da celebração de acordo com suas crenças e decisões.  


“Não me perguntaram se eu gostaria de ir ao sepultamento e não me mostraram meu filho. Quando o tiraram, eu é que pedi para vê-lo, e eles ainda perguntaram por quê, com muita frieza. Me mostraram de longe, o levantaram um pouquinho, viraram, e eu o vi. Depois, saíram com ele. Não me despedi do meu filho, e isso a gente carrega a vida inteira. Percebe o quanto isso nos mata? Não tem como recuperar. É um pesadelo”, desabafa. 


A lei também assegura aos pais o direito de atribuir nome ao natimorto e, se possível, o registro de sua impressão plantar e digital. Além disso, garante às mulheres que tiveram perdas gestacionais o direito e o acesso aos exames e avaliações necessários para investigação do motivo do óbito, à assistência psicológica e ao acompanhamento específico em uma próxima gestação. 


Antes da Política Nacional de Humanização do Luto, a Lei 11.303, sancionada em 2024, em Goiânia, foi a primeira no Brasil a determinar que as unidades de saúde ofereçam leitos separados para mães de natimorto e para aquelas diagnosticadas com óbito fetal, seja no SUS ou na rede privada do município. 


A vereadora Aava Santiago (PSDB-GO), autora do projeto que culminou na lei, partiu de uma experiência particular para elaborar essa que foi uma das primeiras proposituras do seu mandato. Durante o seu parto, ela dividiu o quarto com uma mãe enlutada e acompanhou todo o seu sofrimento. 


“Ela já estava com tudo pronto, tinha o quarto e todos aqueles mimos para receber as pessoas que iriam visitá-la no hospital. Ela teve uma complicação completamente inesperada e perdeu o bebê na hora do parto. Ela gritava de dor, de dor emocional mesmo. Aquilo foi muito impactante para mim e para a minha família. Eu pensava: ‘Não é possível que não tenha lei para isso [separação de leitos]’”, lembra. 


Depois que a lei entrou em vigor, não demorou para que a repercussão saísse do âmbito municipal e ganhasse a atenção do país, despertando a dor de mulheres que passaram pelo luto enquanto assistiam às outras com seus filhos nos braços. 

Isso sim é a verdadeira ideologia de gênero: masculina, branca, hegemônica. Porque, ao mesmo tempo que é muito comum, era uma pauta inexistente na política pública, até ter uma mulher, especialmente atravessada pela maternidade, para falar sobre isso.

Segundo Santiago, após a repercussão, a primeira-dama Janja Silva a procurou e a colocou em contato com Nísia Trindade, ministra da Saúde na época, que deu início à elaboração do que resultaria na Política Nacional de Humanização do Luto voltada para esses casos. 


Questão de cor


De acordo com os dados do SIM (Sistema de Informação sobre Mortalidade), entre 2020 e 2024, o Brasil registrou 242.434 óbitos fetais e neonatais – neste caso, considera-se os primeiros 27 dias de vida. Deste total, 23% dos mortos eram pardos, 15,8% brancos, 1,32% pretos, 0,73% indígenas, 0,07% amarelos e 59% não tiveram a raça identificada durante o registro do óbito. 


A falta de dados raciais na notificação dos óbitos prejudica ainda mais a elaboração de políticas públicas eficazes, pois impede o mapeamento e a compreensão das necessidades das populações vulnerabilizadas pelo racismo.


“Com isso, acaba dificultando que essas necessidades virem pauta e as injustiças permanecem invisibilizadas. Se com informações já é difícil que governos façam políticas públicas que resolvam os problemas de iniquidade racial, imagine sem esse instrumento”, ressalta a epidemiologista Poliana Rebouças.


Ela é uma das responsáveis por uma pesquisa conduzida pelo Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde da Fiocruz Bahia que mostrou que aproximadamente 12% das mortes neonatais precoces – ou seja, de crianças com até sete dias de vida – poderiam ser evitadas se as desigualdades raciais não existissem no Brasil.


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O estudo analisou dados de 23 milhões de nascidos entre 2012 e 2019 e utilizou como indicador a identificação racial da gestante, considerando as implicações sociais desse recorte. Rebouças explica que a raça no Brasil não reflete diferenças genéticas, mas sim posições sociais diferenciadas e historicamente construídas. Nesse sentido, os pesquisadores partiram do entendimento de que mulheres pretas, pardas e indígenas enfrentam piores condições de vida, menor acesso a serviços de saúde de qualidade, e maior exposição à violência obstétrica. 


“Mulheres pretas e pardas tendem a fazer menos consultas pré-natal, ou de menor qualidade, ou as consultas têm início tardio, tendem a receber menos anestesia no parto, têm menor chance de terem acompanhante durante o parto e são mais frequentemente submetidas a intervenções desnecessárias”, ressalta Rebouças. 


O estudo revela que entre mulheres indígenas, a eliminação das desigualdades raciais poderia reduzir em mais de 60% a ocorrência de morte neonatal, baixo peso e de crianças nascidas pequenas para a idade gestacional. Já entre as mulheres pretas e pardas, a redução poderia passar de 40%


Expediente da Gênero e Número


Direção de conteúdo e revisão Vitória Régia da Silva

Edição Bruna de Lara

Design e Infografia Victória Sacagam

iChecagem dos dados Diego Nunes da Rocha


Como fizemos essa reportagem


  1. A prefeitura de Ribeirão Preto tem o portal Publicidade Transparente, com resumo de gastos com propaganda, mas sem informar qual o valor e serviço de cada fornecedor subcontratado pela VersãoBR. Essas subcontratações não são informadas nos empenhos e pagamentos à agência. Mas aparecem nas notas fiscais emitidas em decorrência do contrato com o município.


  2. O portal de transparência da prefeitura tem um módulo de consulta de notas fiscais. Entretanto, não é possível baixar um conjunto de documentos ou extrair relatório detalhado dos mesmos. Para analisar as quase 4 mil notas fiscais da VersãoBR, seria necessário fazer o download uma a uma, individualmente.


  3. Farolete requisitou, pela Lei de Acesso à Informação, o conjunto de todas as notas fiscais emitidas pela VersãoBR. O governo Nogueira, em decisões assinadas pelo secretário de administração, se negou a repassar, alegando que a informação já estava disponível na internet.


  4. Como a prefeitura se negou a repassar o conjunto de notas fiscais, Farolete contratou a desenvolvedora de software Joellen Silva, que desenvolveu um robô para realizar o download automatizado das notas fiscais e extrair o conteúdo das mesmas

 
 
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