top of page

Idosos LGBTQIA+ são empurrados de volta para o armário por casas de acolhimento e família

  • winnylimax9
  • há 5 dias
  • 6 min de leitura
Imagem: Reprodução Instagram/Eternamente SOU - Velhices LGBT+
Imagem: Reprodução Instagram/Eternamente SOU - Velhices LGBT+

Nos últimos anos, um número expressivo de pessoas LGBTQIA+ tem envelhecido com visibilidade no Brasil. A geração que lutou nas primeiras Paradas, que viu nascer o SUS e o casamento igualitário, agora vive a velhice. Mas, ao contrário do que se poderia imaginar, essa trajetória não garante um fim de vida mais digno: para muitos, a chegada à terceira idade pode significar um retorno forçado ao armário, seja em casas de acolhimento, no convívio familiar ou até mesmo no sistema de saúde.


Este ano, a 29ª Parada do Orgulho LGBTQIA+ de São Paulo, considerada a maior do mundo, evidenciou em 22 de junho justamente esse debate ao trazer como tema: “Envelhecer LGBT+: Memória, Resistência e Futuro”.


“Você se afirma a vida inteira, mas, quando envelhece, precisa esconder de novo quem é para ser cuidado”, resume Dora Cudignola, 72 anos, presidente da Eternamente Sou, associação dedicada ao atendimento da população LGBTQIA+ idosa. Viúva, ex-professora e ativista, ela fala com a lucidez de quem aprendeu a se reconhecer e se aceitar com o tempo.


Lésbica, Dora relembra com carinho a relação de 13 anos com sua companheira Sílvia Regina Fracasso, coordenadora pedagógica com quem dividia casa, afetos e sonhos. Apesar da convivência estável, o medo do julgamento as impedia de viver o amor livremente. “Eu me arrependo de não termos andado de mãos dadas na rua. Amávamos tanto, por que a gente se escondia?”, questiona. “Quem perdeu fui eu, deixando de viver pelo medo do que os outros pensariam.”


Na associação, Dora acompanha de perto os desafios enfrentados por pessoas idosas LGBTQIA+ em situação de vulnerabilidade.

Muita gente volta para o armário na velhice. Tem medo de ir para uma casa de acolhimento e ter que se separar do parceiro, da companheira ou de não ser aceito na própria família.”

Seu sonho é criar uma instituição de longa permanência (ILPI) voltada à população LGBTQIA+, mas com uma proposta diferente da lógica tradicional: “Não é só juntar todo mundo. Tem que ter estudo, escuta, preparo. Não queremos repetir a lógica das instituições tradicionais, que separam casais e invisibilizam as identidades.”


O armário também se reinstala nos lares familiares. Pessoas que dependem de cuidados de filhos, sobrinhos ou irmãos LGBTfóbicos muitas vezes omitem sua orientação sexual ou identidade de gênero para manter o mínimo de apoio material e emocional. Segundo Dora, esse medo de rejeição ou abandono é comum entre os idosos LGBTQIA+ que procuram apoio na Eternamente Sou.


Silêncio como política institucional


Apesar de existirem diversas iniciativas de acolhimento para idosos, poucas contemplam políticas específicas para a população LGBTQIA+. No artigo Reflexões sobre velhices LGBTQIA+ em Instituições de Longa Permanência para Idosos” (Sesc-SP, 2023), os pesquisadores Bibiana Graeff, Thaíssa Araujo de Bessa e Wellington R. N. Toprelli destacam que o Brasil tem cerca de 5 mil ILPIs cadastradas, mas nenhuma voltada exclusivamente a pessoas LGBTQIA+.


Muitas instituições, influenciadas por valores religiosos e conservadores, silenciam identidades não normativas e empurram seus residentes à clandestinidade, com impactos como depressão, solidão e abandono. A falta de políticas públicas inclusivas e a invisibilidade nos dados reforçam esse apagamento.


E, muitas vezes, o silêncio é o próprio dado. Em sua pesquisa de doutorado ainda em desenvolvimento, o gerontologista Diego Félix Miguel tentou mapear a presença de pessoas LGBTQIA+ em ILPIs de diferentes regiões do Brasil, com predominância no Sudeste. Dados preliminares mostram que, das 77 unidades consultadas, apenas 13 afirmaram acolher pessoas LGBTQIA+, somando 16 residentes – seis homens gays, cinco pessoas bissexuais, quatro lésbicas e uma pessoa trans. 


Mas o dado mais revelador não estava na planilha, e sim nas respostas evasivas: “Quase nenhuma instituição autorizou o contato. Diziam que a família não permitia, ou então alegavam que a pessoa estava com demência repentina. Só uma deixou a entrevista acontecer”, relata. Para Diego, isso evidencia o quanto o armário ainda é uma imposição institucional. 


“Se essa pessoa LGBTQIA+ está em uma casa de acolhimento e não pode contar a própria história, será que ela ainda pode ser quem é? Ou já foi empurrada de volta para o armário?”


Na avaliação do pesquisador, o silenciamento tem raízes profundas, pois a maioria das ILPIs no Brasil nasce a partir de uma perspectiva religiosa, cujos valores fundadores ainda orientam decisões até hoje, segundo Diego. Em um dos casos que acompanhou de perto, profissionais sugeriram a compra de objetos para garantir uma masturbação segura entre os residentes, mas a direção vetou. “Disseram: ‘Isso aqui é uma casa de família.’” 


A LGBTfobia, pontua o pesquisador, não parte apenas de cuidadores ou profissionais de saúde. Muitas vezes, vem de outros residentes e, de forma ainda mais perversa, dos próprios familiares de pessoas institucionalizadas. 

Já ouvi casos em que um filho exigiu a retirada de uma mulher trans do quarto onde estava sua mãe, e a instituição atendeu ao pedido. Isso é uma violência.”

Além disso, protocolos e rotinas dessas casas costumam ser pensados com base em uma lógica heterossexual e cisgênera, o que silencia identidades e invisibiliza vivências diversas. Formulários e cadastros perguntam a homens “qual o nome da sua esposa?”, enquanto campanhas de Dias dos Namorados retratam apenas casais formados por homem e mulher, por exemplo. Segundo Diego, para transformar esse cenário, é necessário capacitar os profissionais para lidar com a diversidade sexual e de gênero; adequar formulários, cadastros e protocolos para contemplar diferentes configurações familiares e identidades; garantir representatividade em campanhas, atividades e ambientes internos; e respeitar nome social e identidade de gênero, inclusive na escolha de quartos e banheiros para pessoas trans, entre outras medidas.


Com passagem pela atenção primária do SUS, onde coordenou uma equipe que participou de capacitações em saúde LGBTQIA+ promovidas pela Universidade Aberta do Sistema Único de Saúde, Diego reconhece que formação técnica, sozinha, não basta. “Todos fizeram o curso, saíram com certificado, mas, na prática, não sabiam como se conectar com a pessoa. O preconceito não muda com PowerPoint. Muda com escuta e empatia.”

A prática da escuta transformadora é algo que Diego tem promovido em oficinas no Convita, centro de convivência para imigrantes italianos idosos onde atua. Em uma dessas atividades, duas mulheres lésbicas foram convidadas a compartilhar suas histórias com um grupo de mães idosas. “Uma das mães ainda resistia em aceitar o filho trans”, conta. 

Mas o neto dela, de apenas 10 anos, sempre corrigia os pronomes. Um dia, ela parou, olhou para ele e disse: ‘Se meu neto consegue entender, por que eu não conseguiria?’”

Essa experiência abriu espaço para o diálogo e ajudou a desconstruir preconceitos, num processo de empatia mútua entre as participantes.


As ILPIS voltadas ao público LGBTQIA+, para além de “aceitarem” essas pessoas, segundo Diego, precisam garantir um ambiente seguro e acolhedor, com profissionais capacitados para lidar com as demandas específicas da comunidade; traçar políticas explícitas de respeito à identidade de gênero e orientação sexual, incluindo o uso correto de nome social e pronomes; se atentar à representatividade nas rotinas, materiais e atividades; e promover a liberdade na escolha dos quartos, da convivência e da expressão de afetos, sem que haja medo de retaliação ou discriminação.


Ele ressalta que o diferencial está em criar uma cultura institucional realmente inclusiva, em que não seja necessário “voltar ao armário” para ser cuidado. Mas ele também acredita que é preciso ir além da criação das  ILPIs voltadas ao público LGBTQIA+: “A instituição de longa permanência deve ser o último recurso. Precisamos de moradia digna, rede de apoio, centros de convivência específicos. E um sistema de saúde que acolha e não silencie.”


Velhices trans, existências negadas


A professora e ativista Sara Wagner York, uma das fundadoras do Ambulatório de Identidade Transdiversidade da UERJ, afirma que o apagamento da velhice trans é parte de um processo de exclusão que começa na infância. Expulsa de casa aos 12 anos por “ser bicha demais”, ela foi acolhida por travestis nas ruas e submetida, ainda na adolescência, a um processo religioso de “cura gay”. “O pastor começou uma série de atos de terrorismo psicológico, que hoje a gente chama de terapia de conversão. Mas na época, era só ‘Deus contigo’”, relata.


Mais tarde, engravidou uma mulher num contexto de coerção espiritual. “Meu filho foi retirado da minha presença aos cinco anos. Nunca mais o vi.” Só 15 anos depois, ela pôde reencontrar o filho. 


A trajetória de Sara, como de tantas outras pessoas trans, foi atravessada por instituições que deveriam acolher, mas violentaram. “Fui parar em abrigo, fui parar em hospital psiquiátrico, fui parar em centro de atendimento religioso. E sempre com a tentativa de me anular.”


Hoje, ela enxerga que esse apagamento se reinventa na velhice, e por isso a destransição tardia precisa ser problematizada. Segundo Sara, o fenômeno ocorre quando pessoas trans, já na velhice, deixam de expressar sua identidade de gênero e acabam retomando, muitas vezes por imposição social, institucional ou por necessidade de sobrevivência, o gênero que lhes foi atribuído no nascimento. 

 
 
apoie.png

O QUE VOCÊ PRECISA SABER?

Somos uma startup de jornalismo de dados de Alagoas  com foco em produção de conteúdo e produtos inovadores para a realidade local e regional.

Quer falar com a gente?
Entre em contato pelo WhatsApp
ho 6
+ 55 31 98215 0186
  • Facebook
  • Instagram
  • Twitter

Visão Santa Luzia © 2025. Todos os direitos reservados 

bottom of page