Do algoritmo ao linchamento: como o discurso antigênero atinge alvos específicos no YouTube
- winnylimax9
- 2 de out.
- 8 min de leitura

Desde 2018, mais de 5 mil vídeos com discurso antigênero foram publicados no YouTube brasileiro, em ciclos que acompanham períodos pré-eleitorais e votações no Congresso. Essa dinâmica pode agora ser observada no Radar Antigênero, ferramenta da Gênero e Número, em parceria com a Novelo Data, que classifica os conteúdos por temas, estratégias e sujeitos em destaque.
Se os temas e estratégias ajudam a decifrar a engrenagem, os sujeitos em destaque revelam a violência com rosto e endereço. A classificação do Radar Antigênero mostra que o discurso no YouTube não se dispersa: ele se concentra no ataque a mulheres, pessoas LGBTQIA+ (especialmente pessoas trans), feministas, jornalistas, artistas e influenciadores.
A artista e quadrinista Lua Mota (LittleGoat), pessoa não-binária, sente o impacto direto da ofensiva digital. “No auge da pandemia [em 2020 e 2021], recebi ataques e até ameaças, com comentários como: ‘se taca uma bomba, não sobra um’ ou ‘era só uma surra bem dada’”, relembra. “Essas ondas acabam sujando o algoritmo, tornando meu conteúdo mais propício a aparecer para quem odeia o que eu faço.”
Comparando plataformas, ela nota uma diferença no tempo do ódio: “No YouTube, eles têm mais paciência para dissertar, como se fosse uma redação do Enem de ódio.” Para resistir, adota estratégias pragmáticas: bloquear comentários, filtrar mensagens e, em alguns casos, simplesmente se retirar do debate.

O youtuber Jupitter também virou alvo da extrema direita após utilizar em seus vídeos o termo “boyceta” — um termo criada dentro da comunidade transmasculina para nomear homens trans e transmasculinos e desmistificar a relação entre órgãos genitais e identidade de gênero. O objetivo do termo é afirmar uma identidade e dar visibilidade às experiências desses corpos, mas para muitos que desconhecem esse contexto, ele se torna motivo de ridicularização.
A reação foi uma enxurrada de comentários hostis, tentativas de boicote ao canal e campanhas difamatórias em outras plataformas. No vídeo em que Jupitter explica o termo — que já soma mais de 18 mil visualizações — os comentários ilustram a resistência e o escárnio que enfrentou. Um usuário escreveu: “Inventaram uma palavra que literalmente não tem significado. Uao, vou inventar uma agora. Chaveta. O que é: uma identidade de gênero. O que significa: uma identidade de gênero.” Outro ironizou: “Nem o Ben 10 tem esse.”
As reações vão da incompreensão à zombaria aberta: “Kakakakka, não tem mais o que inventar nesse mundo 😂😂😂” ou ainda “Você fala, fala, mas ninguém entende o que é isso, pois não tem definição mesmo você tentando explicar.”
O episódio mostra como até influenciadores com relevância digital e produção consistente podem ser capturados pela engrenagem do ataque — o algoritmo amplia a violência simbólica e transforma o debate em linchamento público. A presença de Jupitter nas redes sociais ajuda a dimensionar esse impacto. No Instagram, ele soma mais de 58 mil seguidores e 1.389 publicações; no YouTube, mantém o canal JUPI77ER, com 11,5 mil inscritos e 144 vídeos; e no TikTok, reúne 34,6 mil seguidores e mais de 648 mil curtidas.
Online e na sala de aula
Professores e professoras também são alvos frequentes. Uma professora de escola pública, que pediu para não ter o nome divulgado por medo de represálias, relata que se tornou vítima de uma campanha organizada depois de discutir questões políticas e históricas em sala de aula. “Eu não estava fazendo campanha, nem defendendo partido. Estava discutindo democracia e cidadania, como parte do currículo. Mas bastou para me chamarem de doutrinadora e comunista”, contou.
Segundo ela, a avalanche foi imediata: “Passei a receber mensagens de desconhecidos, dizendo que eu queria destruir famílias, que eu tinha que ser expulsa da escola. Tive medo de andar na rua, medo de falar meu nome em eventos públicos. Até colegas começaram a se afastar, como se eu tivesse feito algo errado.”
Hoje, ela prefere manter silêncio sobre suas posições fora da sala de aula: “A gente se autocensura. Não é só o medo da agressão, é o medo de perder o emprego, de ser marcada para sempre. Eu só continuo porque acredito na educação como um espaço de resistência, mas é cada vez mais solitário.”
Casos como o dela não são exceção. Em 2023, uma professora também virou alvo após corrigir uma prova em que uma aluna escreveu que “o ministro Alexandre de Moraes acabou com as leis do país”. A correção, transformada em print, foi apresentada por páginas da extrema direita como evidência de “doutrinação” e gerou uma campanha massiva de ódio.
De acordo com dados analisados pelo Radar, apenas na categoria “Educação”, mais de 300 vídeos retratam professores e médicos como “doutrinadores” ou “corruptores da infância”.
A lógica é recorrente: transformar ciência em ameaça moral e rotular informações de saúde como tentativas de “perverter jovens” ou “atacar famílias”.
A ofensiva se apoia em estratégias já mapeadas pelo Radar: desinformação (570 vídeos), medo/ameaça (1.347) e humor depreciativo (2.139). O efeito é bloquear o acesso a informações básicas de prevenção em saúde sexual, especialmente para jovens LGBTQIA+.
O infectologista Ricardo Kores, de Uberlândia (MG), relata conviver com esse assédio desde que começou a falar sobre sexualidade nas redes sociais. “Sofro ataques de forma contínua, algo que não para desde que iniciei minhas postagens. É muito frequente, inclusive, entre colegas médicos. Dizem que um profissional não pode falar abertamente de sexo seguro e prevenção de infecções sexualmente transmissíveis em ambiente público, que isso é errado, que fere a dignidade da profissão.”
Kores tem uma presença digital significativa. No YouTube, reúne 5,6 mil inscritos, mais de 100 vídeos e 709 mil visualizações; no Instagram, são 1,4 milhão de seguidores e 413 publicações; no TikTok, outros 680 mil seguidores e 16,9 milhões de curtidas.
Seu conteúdo busca traduzir temas técnicos de infectologia em linguagem acessível, muitas vezes com analogias visuais. Essa visibilidade, no entanto, também o coloca na linha de frente dos ataques. “Os jovens que estão iniciando a vida sexual, principalmente da comunidade LGBTQIA+, enfrentam dois preconceitos ao mesmo tempo: o da orientação sexual e o de buscar informação sobre sexo seguro”, relata o infectologista.
Na mesma trincheira está o infectologista Vinícius Borges, conhecido como Dr. Maravilha, que atua em São Paulo (SP). Ele também foi alvo de campanhas virtuais e cancelamentos.
No antigo Twitter, fui chamado de ‘médico cubano’, de ‘médico de esquerda’, ou até de alguém que incentiva promiscuidade só por falar abertamente de HIV, PrEP e saúde sexual.”
Ele prossegue: “Um dia postei ‘se for trair, use camisinha’ e sofri um cancelamento. Esses rótulos vinham sempre carregados de preconceito e desinformação. Isso mostra o quanto ainda é tabu discutir sexualidade no Brasil.”
Borges também tem alcance expressivo. No YouTube, soma 15,1 mil inscritos, 118 vídeos e quase 883 mil visualizações; no Instagram, são 214 mil seguidores e mais de 2,6 mil postagens; no TikTok, outros 29,6 mil seguidores e 220 mil curtidas. Ele se apresenta como médico infectologista especializado em sexualidade e saúde LGBT+.
Ao descrever os efeitos do ódio, o médico fala de afastamento e reconhecimento. “Tem gente que se assusta e se afasta, mas muitos me procuram justamente porque sabem que ali vão encontrar informação segura, sem julgamento. Inclusive no meu consultório.”
Para ele, a saída passa por políticas públicas permanentes de prevenção, responsabilização das plataformas e valorização de quem comunica ciência baseada em evidências. “Esse discurso fecha portas e cria clima de censura. Precisamos de apoio institucional e até jurídico para que os profissionais possam falar sem medo.”
Tudo se torna negócio
Os números do Radar ajudam a enxergar o que acontece por trás da tela: conteúdos que atacam direitos circulam melhor quando encontram emoções fortes (raiva, riso, medo) e objetos claros de repulsa (pessoas trans, feministas, escolas, imprensa). É exatamente o tipo de material que se adapta à lógica de atenção do YouTube, que premia o que retém audiência, viraliza cortes e lives, e convida à recompra — assinaturas, “super chats”, links para cursos, e-books e mentorias.
O YouTube é hoje a segunda plataforma mais acessada no mundo, atrás apenas do Google. O Brasil ocupa a quarta posição em número de usuários, o que dá ao país um peso central no ecossistema da plataforma. A lógica algorítmica não é neutra, ela favorece conteúdos que despertam indignação e emoções fortes.
Um estudo de 2021, conduzido por pesquisadores da University College London e Boston University, mostrou que o algoritmo pode direcionar um usuário para um vídeo da comunidade Incel em 6,3% dos casos, em apenas cinco etapas de navegação — um atalho perigoso que ajuda a explicar como discursos de ódio encontram terreno fértil.
“Quanto mais visto, comentado, compartilhado um vídeo é, no caso do YouTube, mais monetizável ele também se torna — seja por meio dos recursos nativos da plataforma, como os anúncios, seja pela venda de produtos e serviços. Muitos influenciadores estão transformando a misoginia em um negócio”, explica a pesquisadora Luciane Belin, o NetLab – laboratório de pesquisa da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ).
A monetização não se limita a nichos de masculinidade: também avança sobre ataques diretos a mulheres e grupos minorizados.
Há influenciadores lucrando com vídeos que acusam mulheres de fazerem falsas denúncias de violência ou assédio sexual”, explica Luciane. “Tanto os produtores quanto as plataformas que mantêm esses vídeos no ar estão usando, direta ou indiretamente, a instigação à violência como produto.”
No campo regulatório, o quadro é ainda mais nebuloso — mas há um avanço legislativo que coloca o Brasil entre os poucos países com dispositivos para criminalizar discurso de ódio relacionados a gênero. A Lei do Racismo, originalmente criada para proteção contra o preconceito racial, foi estendida pelo STF para abranger homofobia e transfobia enquanto o Congresso não legisla.
Em 2018, foi sancionada a Lei Lola, que autoriza a Polícia Federal a investigar misoginia na internet, trazendo a discriminação de gênero para o âmbito penal pela primeira vez. E, em 2021, a Lei de Combate à Violência Política contra a Mulher tipificou como crime ataques que visam impedir mulheres de atuar politicamente, com previsão de prisão de até quatro anos.
Um ponto importante a destacar é que a misoginia não é crime no Brasil. As plataformas dizem ter políticas contra discurso de ódio, mas na prática as definições são restritivas, e a maioria dos conteúdos permanece disponível e até monetizado”, conta Belina.
A reportagem entrou em contato com o YouTube para ouvir a plataforma sobre os dados e os questionamentos relativos à moderação de conteúdo, mas não obteve retorno até a publicação. O espaço segue aberto.
Para a pesquisadora Belina, enfrentar esse cenário exige uma combinação de medidas: melhorar os sistemas de detecção e moderação, garantir a desmonetização de canais que propagam misoginia, premiar conteúdos positivos e educativos, e regulamentar plataformas digitais com foco na proteção de direitos.
“A aprovação do PL 2628 [que dispõe a proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais] é um avanço, mas precisamos estar atentos a como esse tipo de legislação é elaborada para evitar que se torne letra morta”, alerta.
O PL 2628/2022, conhecido como PL das Fake News, foi aprovado em 2024 no Senado e estabelece medidas para a proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais, incluindo maior transparência sobre algoritmos, regras de responsabilidade para plataformas, mecanismos de denúncia mais ágeis e obrigações de remoção de conteúdos nocivos direcionados a menores de idade. O projeto aguarda sanção.
COMO FIZEMOS ESSA REPORTAGEM?
A prefeitura de Ribeirão Preto tem o portal Publicidade Transparente, com resumo de gastos com propaganda, mas sem informar qual o valor e serviço de cada fornecedor subcontratado pela VersãoBR. Essas subcontratações não são informadas nos empenhos e pagamentos à agência. Mas aparecem nas notas fiscais emitidas em decorrência do contrato com o município.
O portal de transparência da prefeitura tem um módulo de consulta de notas fiscais. Entretanto, não é possível baixar um conjunto de documentos ou extrair relatório detalhado dos mesmos. Para analisar as quase 4 mil notas fiscais da VersãoBR, seria necessário fazer o download uma a uma, individualmente.
Farolete requisitou, pela Lei de Acesso à Informação, o conjunto de todas as notas fiscais emitidas pela VersãoBR. O governo Nogueira, em decisões assinadas pelo secretário de administração, se negou a repassar, alegando que a informação já estava disponível na internet.
Como a prefeitura se negou a repassar o conjunto de notas fiscais, Farolete contratou a desenvolvedora de software Joellen Silva, que desenvolveu um robô para realizar o download automatizado das notas fiscais e extrair o conteúdo das mesmas.






